Reflexões sobre a Oficina Experimental de Cinema Digital
do Centro de Convivência e Cultura de Taboão da Serra - SP
Renato
Guenther
05/2017
O
cinema é uma arte grupal em sua gênese1 e só se faz possível numa
prática coletiva, pois exige trabalho em equipe, onde todos os componentes são
de fundamental importância.
Atuação,
cenografia, fotografia, música, edição, entre outros recursos, se mesclam na
obra final que se convencionou chamar de filme2. O próprio cinema,
como arte e produção estética, se mostra uma quimera ao reunir aspectos de diferentes
artes antecessoras.
A
Oficina Experimental de Cinema Digital do CECO Taboão3 existiu entre
2009 e 2017 com a proposta de familiarizar os participantes ao uso das técnicas
e tecnologias que envolvem a produção do cinema digital e permitir a expressão
de seus anseios, sentimentos e perspectivas através da confecção conjunta de
filmes de curta-metragem em vídeo digital, passando por todas as etapas que
envolvem o processo. Em paralelo, eram estudados e discutidos a história do
cinema no Brasil e no mundo, os vários tipos de cinema, e ainda exercitadas uma
série de habilidades, desde criatividade, foco, atenção, organização, até
comunicação, expressão corporal e principalmente convivência em grupo.
A
cada ano, durante os primeiros encontros da oficina, eram discutidos temas de
relevância para os participantes, gêneros e estilos de linguagem.
Selecionávamos trechos de filmes, produções de audiovisual, livros e histórias
em quadrinhos para referências de arte, enquadramento, linguagem e estilo. Em
conjunto escrevíamos o roteiro, dividíamos a equipe entre atores, atrizes,
assistentes de direção e produção, equipe de som, arte e figurino. Eram feitos
ensaios e marcações no cenário que sempre partiam das possibilidades oferecidas
pela estrutura do CECO Taboão. Programávamos os últimos 4 ou 5 encontros para
as gravações.
O
equipamento e o trabalho de captação de sons e imagens ficava a cargo da Escola
de Cinema do Latin American Film Institute4. A partir da parceria
voluntária com esta instituição promovemos o intercâmbio de conhecimentos e
perspectivas. Em troca, oferecemos a certificação na experiência voluntária de
terceiro setor aos profissionais e estudantes da instituição que se dispuseram
a apoiar o projeto. Montagem e edição ficavam a cargo do oficineiro. Em
parceria com outros setores e secretarias do município eram produzidas cópias
da obra finalizada e distribuídas entre todos os participantes.
Em
8 anos, nasceram 8 produções de curta-metragem em vídeo digital. Veiculadas em
concursos e festivais culturais e pela internet através do blog da oficina,
concorremos a premiações e divulgamos os trabalhos realizados em diversos
Estados e municípios5.
Das
conquistas:
- Projeto contemplado com o V Prêmio
David Capistrano no XXIX Congresso de Secretários Municipais de Saúde do Estado
de SP em 2015
(http://cinececo.blogspot.com.br/2015/05/premio-david-capistrano.html)
- Filme "E o Quitandeiro
Pirou!", contemplado com o 2o lugar na categoria C (usuário e equipe
interprofissional com participação de psicólogo) do Prêmio Inclusão Social do
Conselho Federal de Psicologia em Brasília - DF em 2016
(http://site.cfp.org.br/premio-celebra-arte-cultura-e-trabalho-na-saude-mental/)
(https://www.flickr.com/photos/conselhofederaldepsicologia/sets/72157668273585721)
(http://cinececo.blogspot.com.br/2016/05/premio-inclusao-social.html)
- Filme "O Verdadeiro
Encontro", selecionado para o 5º Troféu Graça Aranha de Cinema
Amador do Colégio Civitatis em 2014. Selecionado para o CINEPICOS -
Festival Nacional de Cinema do Centro Sul do Piauí em 2014. Contemplado na
categoria vídeo do VII prêmio Arthur Bispo do Rosário celebrado pelo
Conselho Regional de Psicologia de SP em 2014
(http://cinececo.blogspot.com.br/2014/11/vii-edicao-do-premio-arthur-bispo-do.html)
(http://www.taboaodaserra.sp.gov.br/noticias/2014/12/08/equipe-de-saude-mental-conquista-premio-com-filme)
- Filme "Buscando a
Felicidade", contemplado com o 3o lugar na categoria vídeo do VI premio
Arthur Bispo do Rosário celebrado pelo Conselho Regional de Psicologia de SP em
2011 (http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/exposicoes/bispo6/fr_videos.aspx#)
- Projeto selecionado para o 3o Fórum
de Direitos Humanos e Saúde Mental em -
Florianópolis - SC - 2017 (http://www.direitoshumanos2017.abrasme.org.br/)
- Projeto selecionado para o 5o
Congresso Brasileiro de Saúde Mental - SP – 2016 (http://cinececo.blogspot.com.br/2016/06/5o-congresso-de-saude-mental.html)
- Artigo sobre o projeto publicado no
Boletim do Instituto de Saúde vol. 16 - 2015
(http://www.saude.sp.gov.br/resources/instituto-de-saude/homepage/bis/pdfs/bis16suplemento_web.pdf)
-
Selecionado para o VI SIMPOSIO DE SAÚDE COLETIVA E SAÚDE MENTAL - MG - 2015
- Selecionado para o XII Encontro
Catarinense de Saúde Mental - 2015 (http://cinececo.blogspot.com.br/2015/11/xi-encontro-catarinense-de-saude-mental.html)
- Selecionado para o ABRASCÃO -
Encontro Brasileiro de Saúde Coletiva - GO - 2015 (http://cinececo.blogspot.com.br/2015/08/abrascao-2015.html)
- Selecionado para a IV Mostra Nacional
de Experiências em Atenção Básica e Saúde da Família - Brasilia - DF - 2014 (http://cinececo.blogspot.com.br/2014/03/iv-mostra.html)
Ao
longo da experiência, conquistaram-se aliados e admiradores através da candura
e do encanto inerentes ao projeto e ao passo que surgiram os resultados. Porém,
a maior realização se fez na franca constatação dos progressos cotidianos dos
participantes à medida que se demonstravam capazes de expressar e materializar
seus anseios. Ao se reconhecerem autores, capazes de criar algo conjuntamente e
perceber seu trabalho projetado e contemplado por diferentes audiências,
surgiram sentimentos de valor próprio, pertencimento e maior integração social,
o que colaborou para a promoção de saúde como um todo6.
Mas
não só os usuários dos serviços de saúde mental do município se beneficiaram.
Ao longo da experiência percebemos também o processo de sensibilização que
ocorreu com os profissionais, técnicos e voluntários que se doaram ao projeto.
Também as diferentes audiências que tem oportunidade de conhecer esse trabalho
tendem a se comover com o tema da inclusão social do diferente através da arte7.
De fato percebemos um processo de questionamento e conscientização a cerca das
fronteiras que delimitam arte e saúde, público e privado, o são e o insano.
Assim
como o cinema, esta oficina já nasceu marcada por hibridismos. Constituindo um
fenômeno que carregou em si características distintas de diferentes espécies.
Produto da arte e das linguagens estéticas, encubada por um equipamento de
saúde pública municipal, mas em parceria com uma instituição de ensino
particular. Mesclando formas, conteúdos, histórias e pessoas em prol do
objetivo comum de materializar sonhos.
Quimera,
não como o monstro da mitologia grega, parte leão, parte cabra, parte serpente,
que cuspia fogo e aterrorizava aldeões8. Uma anomalia, produto
incidental do estupro da necessidade de dar voz aos inoportunos e da carência
de recursos e condições.
Sonho
que se sonha junto9, transpassou fronteiras, mostrando-se forte como
a realidade.
No
CECO Taboão, cada filme produzido era uma gestação coletiva. Durante a criação
de roteiro, personagens e cenários, cada participante colaborava a seu modo,
respeitado em suas limitações e estimulado em suas habilidades, de modo que ao final
não se podia atribuir o filho a um único pai.
Quanto
aos recursos utilizados, partíamos inicialmente das disposições do equipamento
público municipal. Mas cada participante acabava colaborando, trazendo peças do
próprio guarda-roupas para compor o figurino ou da própria moradia para compor
o cenário. Muitas vezes aproveitamos sucata ou objetos desprezados por outros,
fazendo o melhor uso possível do que tínhamos, alinhando as possibilidades de
cada indivíduo com o tempo, espaço e até as condições climáticas disponíveis.
Inicialmente,
quando Nise da Silveira fez uso da arte em asilos manicomiais, também sua
ousadia e inovação foram vistas com incredulidade10. Diante de tanto
ardor e dedicação, enfrentando tantas limitações das mais diversas ordens, fica
claro que não se tratou de algo fácil. Mas se fez imprescindível perceber cada
produção como algo lúdico, divertido: causa e conseqüência da necessidade
humana de convivência em grupo.
Assim,
alguns eixos fundamentais se delinearam:
- Binômio Arte e Saúde
- Parcerias público/privadas
- Gestações grupais
- Eficiência : “fazemos o melhor com o que temos”
- Diversão : “se não for gostoso não vale a pena”
- Inclusão
Mas
se esta oficina não se compôs de meros retalhos ao modo dum monstro como fez o
personagem de Mery Sheley no romance Frankenstein11, o que fermentou
seu trabalho?
Segundo
Vieira12, cosmoconsciência é a condição ou percepção interior da
consciência do Cosmos, quando a consciência sente a presença viva do Universo e
se torna una com ele. O termo é um neologismo para uma condição descrita
anteriormente por outro ilustre acadêmico: Richard Maurice Buke.
Buke
foi, entre outras ocupações, psiquiatra e dirigente de asilos para insanos no
Canadá, nos idos de 1870. Reformista e inovador no tratamento de alienados,
nutria estreita admiração pelo poeta americano Walt Whitman, de quem foi amigo
e biógrafo13.
Em
1901 teria publicado sua grande obra, “Consciência Cósmica”14 em que
trata do fenômeno impar que deu nome a seu livro.
Falando
de maneira simplista, o fenômeno consistiria numa espécie de expansão de
percepção e entendimento, aliado a manifestações físicas bastante marcantes. O
estado máximo de consciência do ser humano em que ressignifica sua experiência
de existir, percebendo além das fronteiras aparentes. Algo a não ser narrado,
mas experimentado e que o próprio autor tentou descrever assim:
“Entre outras coisas em que
não chegou a acreditar, percebeu e compreendeu que o Cosmo não é matéria morta
e sim uma Presença viva; que a alma do ser humano é imortal; que o universo é
tão bem estruturado e ordenado que, sem qualquer possibilidade de erro, todas
as coisas trabalham juntas para o bem de cada uma delas; que o principio
fundamental do mundo é o que chamamos de amor e que a felicidade de cada um é a
longo prazo absolutamente certa.” (BUKE, 1996, pág. 43)
Tal
fenômeno equivaleria ao que as mais diversas correntes místicas definiriam como
iluminação15. Estado de percepção de que estamos todos ligados e
funcionando em harmonia com uma vontade, que ao mesmo tempo é a vontade de
todos e uma vontade maior: transcendente.
Para
além do misticismo, Buke descreve a consciência cósmica como um estado a que o
ser humano evoluirá naturalmente assim como evoluiu um dia de uma consciência
simplista para a autoconsciência.
Porém
não é interesse deste artigo navegar em águas turvas, mas traçar um paralelo
entre o fenômeno descrito por Buke e a prática observada na Oficina
Experimental de Cinema Digital do CECO Taboão, pois os trabalhos relacionados
aos cuidados com os mentalmente transtornados vêm se valendo cada vez mais de
diferentes práticas e olhares, intersetoriais e multiprofissionais16.
Segundo
Lopes17, em um Centro de Convivência, o conceito de “nós” é diferente
do conceito de eu e o outro:
“(...) implica como um abraço probiótico que
mistura perfumes dos corpos distintos quando esse abraço se dá.” (LOPES, 2015,
pág. 28)
Quando
nos percebemos borrando fronteiras18 entre arte e saúde, publico e
privado, são e insano, cidadania e exclusão, sonho e realidade, convém
questionar se as fronteiras realmente existem ou se são mera reação à
inconsciência de um sistema maior. De fato, como equipamentos e sistemas que
deveriam funcionar em rede, percebemo-nos como desbravadores deste estado de
consciência maior, não criando um monstro, mas trazendo luz para as
possibilidades existentes, amadurecendo e evoluindo na prática de saúde mental:
expandindo consciências.
Nos
interessa portanto questionar e refletir se esta experiência não representou a
manifestação espontânea de ao menos um sussurro do processo de transcendência
da ilusão de separação19 determinada pelo ego analítico humano.
Afinal:
“Existimos mutuamente, somos membros uns dos outros. A consciência é um
vasto oceano e ninguém é uma ilha. Nós nos encontramos e nos fundimos uns nos
outros. Não há fronteiras. Todas as fronteiras são falsas.” (Tilopa em: OSHO,
2006, pág. 230)
REFERÊNCIAS
1 MASCARELO, F.
(org.). A história do cinema mundial, Campinas (SP): Papirus, 2006.
2 ARONOVICH,
T. Fazendo Cinema, São Paulo: Editora Criativo, 2014.
3 FONSECA, E.;
GUENTHER, R. Oficina Experimental de Cinema Digital do Centro de
Convivência e Cultura de Taboão da Serra, In: V Prêmio David Capistrano de
Experiências Exitosas na Área da Saúde 2015. Boletim do Instituto de Saúde,
Vol. 16, sup., novembro de 2015, p.37 - 40. Disponível em: http://www.saude.sp.gov.br/resources/instituto-de-saude/homepage/bis/pdfs/bis16suplemento_web.pdf
. Acesso em: 27 out. 2016.
4 LATIN AMERICAN
FILM INSTITUTE. Site institucional. Disponível em: http://lafilm.com.br
Acesso em: 27 out. 2016.
5 OFICINA DE CINEMA
DO CECO TABOÃO. Blog da Oficina Experimental de Cinema Digital do Centro
de Convivência e Cultura de Taboão da Serra - SP. Disponível em: http://cinececo.blogspot.com.br .
Acesso em: 27 out. 2016.
6 DIONISIO, G. H.;
YASUI, S. Oficinas expressivas, estética e invenção. In: AMARANTE, P.;
NOCAM, F. (Org.). Saúde mental e arte: práticas, saberes e debates. São
Paulo: Zagodoni, 2012, p.53 – 65.
7 CANAL SAÚDE NA
ESTRADA, Fiocruz. SP: Taboão da Serra e Campinas, programa exibido em
05/10/2015. Disponível em: http://www.canal.fiocruz.br/video/index.php?v=SP-Taboao-da-Serra-e-Campinas-CSE-0080 .
Acesso em: 27 out. 2016.
8 BRANDÃO, J.
S. Mitologia Grega vol. III. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
9 SEIXAS, R. Prelúdio. Música, álbum: Gita, Lado B,
Faixa 4. Gravadora: Philips, Brasil, 1974.
10 BERLINER,
Roberto. Nise: No Coração da Loucura. Filme. Imagem Filmes, Brasil, 2016.
11 ARAUJO, A. F. O
monstro de Frankenstein: uma leitura a luz do imaginário
educacional. Revista temas em educação, v. 23, n. 1. João Pessoa:
jan.-jun. 2014. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br/index.php/rteo/article/viewFile/18790/11416 .
Acesso em: 27 out. 2016.
12 VIEIRA, W.,
M.D. Projeciologia: Panorama das Experiências Fora do Corpo
Humano. 4ª edição. Rio de Janeiro: Instituto Internacional de
Projeciologia e Conscienciologia, 1999.
13 HARRISON, Jonh
Kent. Beautiful Dreamers. Filme, NFB, Canadá, 1990.
14 BUCKE, R. M.,
M.D. Consciência Cósmica. Paraná: AMORC, 1996.
15 WHITE, J.
(org.). O mais elevado estado da consciência. 10ª edição, São Paulo:
Editora Cultrix/Pensamento, 1997.
16 AMARANTE,
P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2008.
17 LOPES, I.
C. Os Centros de Convivência e a Intersetorialidade. In: Centros de
Convivência e Cooperativa, Cadernos Temáticos, São Paulo: CRP - SP, 2015, p.27
- 31.
18 TAMIS, P. Rede
dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial, artigo apresentado durante a
mesa “Arte, Cultura e Saúde Mental”. In: 5º Congresso Brasileiro de Saúde
Mental. São Paulo: ABRASME, 2016.
19 OSHO. Tantra,
a Suprema Compreensão, São Paulo: Cultrix, 2006.